(as duas clarissas já se encontram em cena, enquanto a luz abre em resistência)
CECÍLIA
Vosmecê sequer tocou no pão e na água.
MARIANA
Não é possível que não haja correspondência alguma do Dr. Gonçalo. Não é possível.
CECÍLIA
Mas isso não é motivo.
MARIANA
É motivo suficiente! (tempo) Perdão. Peço que me perdoe, Irmã Cecília. Eu tenho estado um tanto quanto fora de mim. Mas eu prometo que com muita oração e com muita alegria na alma, tudo vai se encaminhar da melhor forma possível.
CECÍLIA
Por certo que vai. E agora eu peço, por amor do Cristo, que vosmecê se alimente um pouco, ao menos um pouco.
MARIANA
Irmã Cecília! Houve alguma vez em tua vida em que vosmecê precisou fazer alguma coisa, em virtude de como se encontrava em determinado momento?
CECÍLIA
Como assim?
MARIANA
Vosmecê sabe que eu estou morrendo.
CECÍLIA
Eu não sei de nada. E vosmecê, por favor, não me repita mais uma sandice dessas! Saiba que tudo o que eu fizer será para que vosmecê não se enfraqueça. Afinal de contas, pelo que eu saiba, nenhuma de nós aqui tem qualidades suficientes para atingir a santidade através de martírio.
MARIANA
Não a santidade, mas a realidade. Se eu te disser que é apenas em vosmecê que eu deposito toda a minha confiança, e que diante de tudo o que tem acontecido, eu pedir a vosmecê dois favores imensos, eu agradeceria eternamente se puder ser atendida. É algo sério. Não tenciono brincar com isso.
CECÍLIA
Não foi justamente nossa Santa Mãe Clara quem nos ensinou a ajudar as irmãs que estivessem descobertas e necessitadas?
MARIANA
Sim.
CECÍLIA
Façamos uma troca. Vosmecê come do pão e bebe da água que eu lhe trouxe e eu te serei toda ouvidos para esses teus dois pedidos. (IRMÃ MARIANA se serve e bebe um gole) Pois bem... Quais são eles?
MARIANA
Eu quero me confessar contigo. E depois vosmecê me conceda a extrema unção.
CECÍLIA
Vosmecê disse que não ia brincar com esse tipo de coisa.
MARIANA
Eu não estou brincando.
(Sinos.)
MARIANA
Vosmecê não tem que participar do ofício?
CECÍLIA
A reverenda Madre me reservou para que eu estivesse sempre contigo. Eu disse a ela que vosmecê está bastante mal.
MARIANA
Pois não mentiu. Para mim, as quatro paredes desta cela se transfiguram gelidamente no cárcere de Gonçalo.
CECÍLIA
Vosmecê não devia dizer blasfêmias.
MARIANA
Já não basta minha penitência?
CECÍLIA
Eu muito que tenho te trazido pão, água e frutas do nosso pomar, mas vosmecê tem evitado comer. Se tua penitência é esperar pelo teu último suspiro em prol da saída do Dr. Gonçalo da Cadeia Pública, muito te admiro. Tua determinação em te tornar mártir beira as raias da insânia.
MARIANA
Eu já pedi a vosmecê a extrema unção.
CECÍLIA
Insânia. Blasfêmia. Heresia.
MARIANA
Irmã Cecília, vosmecê sabia que o significado de teu nome está associado à cegueira?
CECÍLIA
E no entanto, eu enxergo com muito maior distância do que vosmecê, Irmã Mariana, cujo pensamento está única e exclusivamente voltado para o aqui e o agora. E nada mais.
MARIANA
Cecília, eu preciso tirar Gonçalo da prisão, e só vosmecê pode me ajudar!
CECÍLIA
Não vejo lógica pelo fato de que vosmecê alega estar “apaixonada” pelo Dr. Gonçalo, uma vez que nem sabe sequer se ele continua vivo ou, sabe-se lá, se foi desterrado para a África.
MARIANA
O que vosmecê está sabendo? Por que vosmecê não me traz informações sobre ele? Por que vosmecê não me traz mais cartas? Por que me condena desta forma?
CECÍLIA
Eu não trago cartas por que não há. Simplesmente não há. Não há.
MARIANA
E não existe “alegação” alguma em eu dizer que estou apaixonada por ele, pois é a plena verdade. E ele também está apaixonado.
CECÍLIA
Delírio teu. Delírio de juventude, ilusão pura. Este homem é conhecido nas ruas da Cidade. Este homem tem toda uma vida lá fora!
MARIANA
Este homem tem toda uma vida aqui dentro de mim!
CECÍLIA
Eu vou chamar a Madre Superiora!
MARIANA
Não! Eu preciso apenas que vosmecê me escute em segredo de confissão!
CECÍLIA
Eu já ouvi o suficiente!